Comentário.
O primeiro-ministro José Manuel insiste em afirmar que aceitou o cargo de Bruxelas por estar convencido de que haveria uma «solução de estabilidade» com base na maioria coligada no parlamento. Mas se assim é e se José Manuel está a ser verdadeiro, porque razão não informou a N.º 2 do Governo, Manuela Ferreira Leite sobre o seu drama psico-patriótico, quando já no seu gabinete o aconselhavam a aceitar a ida para Bruxelas? Será que um assessor de primeiro-ministro vale já mais que uma Ministra de Estado e figura carismática da reclamada retoma? Se vale, significa isso que o governo que cai com José Manuel, não tinha estabilidade. Era um governo de assessores...
José Manuel naturalmente sabe que hoje os governos em Portugal não se fornam nem se derrubam e muito menos podem continuar como nos tempos do senhor D. Carlos... Ele, José Manuel, contribuiu e muito para a «eleição do Primeiro-Ministro de Portugal», contribuiu e muito para o definitivo esbatimento da ideia de que as legislativas, numa primeira linha, são para eleger deputados, um conjunto de deputados, diversos grupos de deputados, pelo que apenas numa segunda linha deveria surgir o primeiro-ministro, independentemente deste ser ou não ser deputado eleito. José Manuel foi eleito como cabeça de cartaz político, figura que cultivou até à exaustão perante o desgraçado eleitorado que o ouviu de tanga e o escolheu trajando tanga.
Dizer-se agora que em 2002 não foi eleito o «Primeiro-Ministro de Portugal», que não foi eleita uma pessoa em concreto para tais funções, que não foi sufragada uma figura individual para chefiar o Governo e que por ele fosse responsável perante o Parlamento e o País, é no mínimo brincar com esta frágil democracia como o senhor rei D. Carlos brincava no interior da sua carruagem quando, vindo do estrangeiro, se sentia no regresso à piolheira.
As eleições legislativas, por obra a graça dos partidos de poder – o PS e o PSD – transformaram-se, como primeiro objectivo, no sufrágio do candidato a Primeiro-Ministro, relegando-se para segundo, terceiro ou até para o último e esquecido objectivo, a eleição de deputados. Muitos certamente votaram apenas em José Manuel e não nos deputados do PSD, apenas porque não quiseram escolher Ferro Rodrigues embora tivessem querido intimamente sufragar os deputados do PS – pretenderam, acima de tudo, um corte com tudo que supostamente cheirasse a Guterres ainda que de forma longínqua, e por isso escolheram José Manuel.
O que pretende agora o mesmo José Manuel? Pretende introduzir a figura anómala do «governo-estafeta», como se governar com as eleições que há em Portugal e com o estilo de eleições implantado em Portugal, fosse como que uma corrida de 1500 metros em que um atleta-político entrega a outro inesperado atleta-político o testemunho, aquele necessário pauzinho para prosseguir na pista e contar para o cronómetro.
Mas o facto é que José Manuel abandonou o governo por um motivo constitucionalmente não previsto. Não há uma única alínea da Constituição que estabeleça os mecanismos de substituição do primeiro-ministro por este decidir transferir-se para um posto internacional, por isto mesmo apresentando a demissão com a interrupção abrupta de um mandato que jurou cumprir com lealdade. Lealdade que, pelos vistos, faltou para com Ferreira Leite, a N.º Dois para não se falar do Eleitorado.
Nos termos exactos a Constituição, «implicam a demissão do Governo:
a) O início de nova legislatura (não é o caso);
b) A aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro (é o caso, todavia isto acontecendo não por efeito de instabilidade mas surgindo como motor ou causa de instabilidade);
c) A morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro;
d) A rejeição do programa do Governo;
e) A não aprovação de uma moção de confiança;
f) A aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
Nada mais, a não ser que «o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais».
Ora alguém duvida que os resultados eleitorais de 2002, para efeitos de formação do Governo, se traduziram na eleição de José Manuel e apenas de José Manuel para «Primeiro-Ministro de Portugal» como o corredor de fundo do partido mais votado?
Pela lógica e pela tradição eleitoral, terá de haver um novo sufrágio. Pelo contrário, aí teremos um «governo-estafeta» com José Manuel a entregar, no seu passo de corrida para Bruxelas, o testemunho a Santana Lopes que deveras não foi escrutinado em 2002.
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