22 abril 2006

Fragmento da Cozinha Velha. Evangelho Oficial

Modelo. Em verdade, em verdade vos digo: um certo dia, acercou-se um escriba d'Aquele que diz «As Necessidades sou Eu», pedindo-lhe que o orientasse na redacção de textos para a turba diplomática e para a plebe curiosa destas coisas. «Então não sabes o que a turba quer e do que mais gosta?», perguntou Aquele ao escriba que, rojando-se-lhe humildemente aos pés, respondeu com os olhos colados à calçada do Rilvas - «Senhor, dai-me um pouco da Vossa visão para que possa ver bem as palavras que escrevo, pois sem um porção dos Vossos olhos enxertada nos meus, escrevo contra a minha vontade e por certo contra a Vossa». Então, Aquele apiedou-se do escriba e, pousando as mãos sobre a sua cabeça ao mesmo tempo que os polegares lhe esfregavam as pálpebras, disse: «Escriba, que se afaste de ti o demónio da crítica e que do teu espírito saia o espírito do mal que te faz considerar como coisa pública aquilo que só a Mim pertence. Levanta-se e escreve sobre passarinhos!». Ditas estas palavras, o escriba levantou-se e, bendizendo Aquele, começou a procurar uma laje de pedra sobre a qual pudesse escrever com comodidade as palavras com que, a partir daquele momento, se sentia inspirado, ao serviço d'Aquele. E encontrada a laje, o escriba soltou o seu espírito vendo que as suas palavras eram já palavras d'Aquele e não suas. E a turba ficou atónita pelo milagre quando alguém leu tais palavras e que eram: «Os passarinhos tão engraçados, fazem os ninhos com mil cuidados; oh! não os perturbem nos beirais, deixem-nos fazer as necessidades mesmo que sujem os vossos frontais - são pelos filhinhos que vão nascer, que os passarinhos as vão fazer.» Ouviu-se então uma calorosa salva de palmas no Terceiro Andar, pelo que o bom fariseu Calhandro segredou ao ouvido d'Aquele: «Que grande milagre operaste! Assim, sim! Crónicas assim é que salvam o nosso Povo!» E satisfeitos, todos foram dando vivas até à Cozinha Velha onde, a expensas de um rico homem, a laje foi colocada à disposição dos escribas. E antes de dispersarem, Aquele ainda disse: «Crónicas destas serão abençoadas pelos séculos dos séculos porque são a mais pura liberdade. Em verdade, em verdade vos digo, este é o evangelho oficial.»

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