Meus senhores, a memória também é livre. E assim sendo, espaço para a prosa de Fernanda Leitão que, de há muito pertence à família de NV.
CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão
ERA UM RISO NO CHIADO
Não me lembro como se formou aquele grupo de monárquicos com quem almocei, anos a fio, à quarta-feira, que se encontrava à porta da Brasileira. Tantos anos que um dia o Vasco Sampaio lembrou que fazíamos as bodas de prata de frequência no restaurante A Primavera, no Bairro Alto, o que veio a dar um almoço à porta fechada, servido por nós ao Jerónimo e à patroa, mailas moças que habitualmente nos serviam à mesa, numa comoção que o mar de garrafas tornou enorme ao tempo de uma sobremesa, rematada por discursos piegas de que foi vencedor um adido comercial sueco que, quase a chorar, considerou ser Portugal “o último reduto de ternura na Europa” . Atrapalhado mas teso, a cortar o passo à fraqueza, levantou-se o Conde de Fornos secamente: “Está bem, pronto, o que lá vai, lá vai. Nós nunca mais nos metemos noutra”. O riso salvou o restaurante de uma inundação.
O banqueiro dos almoços, que tanto podiam ser no Bairro Alto como no Ramboia de Alcântara ou no 31 da Armada, era o Conde do Lavradio, porque era ele quem, compondo o monóculo, fazia a divisão da conta por aqueles bicos todos, sem nunca dispensar uma observação atónita ao esvoaçar os olhos pelas garrafas abatidas: “Mas para que é que foi tanto pão?”.
Nunca atinámos com a resposta. Eramos um grupo nutrido de talassas que, sem doutrinas, entre um prato e outro, reduzia tudo às boas piadas, ao riso, à festa de sermos amigos e estarmos juntos. Até nos demos ao luxo de ter um republicano com lugar cativo à nossa mesa, o Dr. Joaquim Parro, para os dardos verbais de lado a lado se espanejarem sem ressentimento nem preconceito. Era uma perfeita rebalderia em que até o sossegado António José Sousa Tavares metia colherada.
Este grupo deu quatro embaixadores: Afonso Malheiro, Afonso de Castro, Sebastião Castelo Branco (Pombeiro) e António Pinto Machado. Que alegria era quando um deles vinha do estrangeiro e se juntava ao almoço! Era uma coisa tão certa que, já no Canadá, recebi um dia um cartão do Daniel Noronha Feio que assim rezava: “Os almoços das quartas são agora às segundas. Estás avisada para quando cá vieres”. Lembro-me de me ter dado pouco jeito essa mudança, porque à segunda-feira tinha eu outro almoço de monárquicos, mas esse na Sociedade de Geografia, e todo à séria, presidido pelo médico e historiador Mário Saraiva, onde muito aprendi com os seguidores de António Sardinha e José Pequito Rebelo. Assim o disse aos rapazes do Chiado quando fui a Lisboa, que gentilmente voltaram às quartas-feiras.
Desse grupo, culto e cheio de verve, mas modesto e saudável, já nos morreu o Daniel Noronha Feio, o Vasco Sampaio, o Gonçalo Mesquitela, o Salvador Lavradio, o José Hipólito Raposo e o Joaquim Parro. E agora morre-nos o António Pinto Machado.
Vi o António Pinto Machado pela última vez poucos dias antes de ele partir para Bruxelas. Fizemos-lhe um almoço de “até breve”. E porque ele me tinha pedido havia tempo uma moca de Rio Maior, levei-lha, embrulhada em papel de seda e laçarote, bruta mas envernizada, com o nome António em tachas amarelas. Encomendei-ao Tio Abílio, de Rio Maior, que foi o inventor e o fornecedor dessa arma pitoresca quando o povo do centro do país se foi aos comunas como Santiago aos mouros, naquele tempo de PREC e estupidez. Tão contente que ficou o António! E tão triste que os amigos estão hoje!
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