Regressa a habitual crónica de Fernanda Leitão. Valendo a pena conhecer o remate antes de se começar pelo primeiro parágrafo, aqui está: "Mas não cometam a imprudência de julgar os emigrantes portugueses parvos ou estúpidos. Para já, as autoridades americanas estão a investigar o que fez o BCP por aqueles lados. Se a coisa alastra, ainda vamos ter notícias no Canadá."
CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão
BÊ CÊ QUÊ?
Depois de 1975 estive largos anos alheia aos bancos portugueses. Talvez tivesse sido aquela cena de soldados, armados de G-3, à porta dos bancos nacionalizados de fresco, dando um ar de cidade ocupada a Lisboa, e parecia mesmo, porque tudo aquilo era obra dos novos senhores que, por sua vez, eram discípulos da União Soviética e por ela mandados. Era assim, ao menos a meus olhos, uma coisa estrangeira, estranha, e não um ajuste de contas à portuguesa. Mas, garantidamente, quem ditou o meu afastamento foi o Sr. Judas da Silva. Chamo-lhe este nome e não o verdadeiro porque é bem capaz de já ter morrido, e não há razão para ofender a sua descendência.
O Sr. Judas da Silva era o risonho, amável e prestável funcionário do BES que, por anos a fio, me atendeu ao balcão desse banco para os lados do Chiado. Nesse tempo, jovem jornalista, a minha aldeia ia do Príncipe Real ao Rossio. Era um tipo catita, aquele bancário.
Quando o BES reabriu, dias depois de nacionalizado, fui levantar dinheiro, ao balcão, que nesse tempo não havia cartões de crédito. Entreguei o cheque, preenchido e assinado, e o Judas da Silva, enfiado num camisolão vermelho cheio de emblemas de partidos, que até parecia o Manecas das Intentas quando esteve a servir de ama seca ao Raúl Rego no Palácio Foz, naqueles primeiros dias loucos da abrilada, pois o Judas da Silva, contava eu, devolveu-me o cheque, com uma cara comprida e em voz desabrida: “Agora tem de pôr o seu número!” Surpreendida, perguntei que número. Quase me gritou: “Todos os clientes têm um número!”. Pensei num relâmpago: “Se calhar vou presa, mas este marmelo não se vai ficar a rir”. Nesta altura do entremez já o silêncio era total entre a pequena multidão que enchia a filial do BES. Em voz bem alta, mas calma, expliquei ao novo revolucionário, ao “democrata de 26 de Abril”: “Eu não tenho número, tenho nome, sou cristã e baptizada. Número, como as bestas na ferra, têm os desgraçados que vivem nos países comunistas e os candidatos a isso que há por esse mundo”. E sem lhe dar tempo a mais nada, acrescentei: “Traga-me o extracto total da minha conta, preencha você mesmo o cheque, porque agora é meu empregado também, deixou de ser empregado da família Espírito Santo”. A dizer e a olhar para o homem bem de frente, e ele a fazer-se de todas as cores, enraivecido. Nisto salta lá do gabinete o gerente, incomodado, a pedir calma, a perguntar-me se podia ajudar. Sempre calma expliquei-lhe que ordenasse ao funcionário o preenchimento do cheque com o total da quantia em depósito, e queria isso imediatamente. A partir daí, e por muitos anos, só lidei com bancos estrangeiros.
Nunca me servi de nenhum banco português em Toronto. Assisti à golpada da Caixa Económica Faialense, vi o Pinto&Sotto Mayor ser vendido ao BCP, registei que vários bancos portugueses abriram escritórios no Canadá. De forma geral, quase todos têm tido uma existência discreta. O quase foi o BCP, que teve as direcções mais absurdas, admitiu funcionários controversos, e segundo se dizia à boca cheia muito pouco competentes, de quem se murmurava que tinha créditos mal parados por entre amigos e protegidos, enfim um banco que fazia do estardalhaço, da badalação e da publicidade à tripa forra para jornais da sua privança, a sua pedra de toque. Nunca confiei naquela filial nem um bocadinho, e isso mesmo o disse a uma prestimosa publicitária que, pelo telefone, tentava arranjar clientes entre os portugueses. De repente, vi o Bank of Montréal comprar o estaminé.
E por fim, o que todos sabemos, toma lá rajá que é fresquinho: uma cégada à portuguesa com certeza, com todos os condimentos, incluindo um antigo emigrante tornado milionário a apresentar queixa à Procuradoria Gral da República, para depois nos aparecer no rol dos que, para paparem o BCP, o fizeram com dinheiros públicos da Caixa Geral dos Depósitos, e este pormenor foi o que mais me divertiu apesar de estar farta de ver este filme de uns que se dizem beneméritos da comunidade para tripudiarem sobre ela. Há vários clones desse artista na emigração... Uma rebalderia que mais parece Copus Night que outra coisa e, dizem os que bebem do fino, destinada a caír no prato da maçonaria.
Que lhes faça bom proveito. Mas não cometam a imprudência de julgar os emigrantes portugueses parvos ou estúpidos. Para já, as autoridades americanas estão a investigar o que fez o BCP por aqueles lados. Se a coisa alastra, ainda vamos ter notícias no Canadá.
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