Por vezes, as palavras dos outros tiram-nos as nossas. E bem.
Ferreira Fernandes, no DN
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Ontem, ao fim do dia, eu estava a escrever esta crónica. Era sobre Aznavour que cantava em Lisboa. Eu escrevia sobre um rapaz baptizado Shahnourh, filho de arménios, que virou Charles e símbolo de França, porque nasceu num porto, num cruzamento do mundo, em Paris. E dali parti para a canção de há quarenta anos, Le Métèque, que não era dele, era de Georges Moustaki. A canção do meteco, do grego metoikos, como os atenienses chamavam aos que não eram da cidade, que viviam nela mas tinham vindo de longe. Meteco como Moustaki, filho de Alexandria, e que desaguou em França para a inundar de belas canções. Meteco como Aznavour.
Esta crónica deveria ir por aí fora, com Yves Montand (de facto, Ivo Livi), com Serge Reggiani (nascido na italiana Reggio Emília), Brel (nascido na impronunciável belga Schaerbeek). Era uma crónica sobre os grandes da canção francesa quando ela foi grande. Os grandes, afinal, metecos. E, afinal, ensino isso a Atenas, os melhores dos cidadãos, porque trazem à cidade o mundo.
Ontem, ao fim do dia, eu estava a escrever essa crónica. Telefonaram-me: "Morreu o Joaquim." Morreu Joaquim Pinto de Andrade. No meio da crónica. Da sua crónica. Vão dizer: ele era angolano. E era-o. Ninguém conheci, dos pais da nacionalidade angolana, que pudesse dizer o mesmo que ele: não feri o meu país. Ele foi a coragem serena que lhe valeu prisões durante a Angola colonial, ele foi a fraternidade angolana quando o país se dilacerou em guerras civis, ele foi a honestidade quando Angola se ofuscou de falsa riqueza. Ele foi o angolano perfeito em tempos terríveis. E eu sei porquê: ele era um meteco. Um cidadão do mundo.
Eu era um adolescente e o Joaquim Pinto de Andrade era um padre exilado, colocado sob vigilância em Vila Nova de Gaia. No Verão, o pobre diabo da PIDE, de fato escuro, seguia-nos até aos areais da praia e tentava ouvir-nos as conversas. O Joaquim falava de Camilo ou de Ramalho, dos "portugueses de língua tersa", que ele aprendera quando era menino em Ambaca. O português PIDE perceberia a admiração daquele "terrorista" (então, presidente de honra do MPLA) por escritores portugueses? O Joaquim falava de Roma, onde estudara, e encarreirava-me para escritores de liberdade: Ignazio Silone, Italo Calvino Falava-me de Paris, onde estivera no primeiro congresso de escritores e artistas africanos (com o seu irmão Mário) e metia, no meio da conversa, a necessidade de ouvir Brel.
Há quase 40 anos, em Setembro de 1969, eu saí de Portugal com uma carta de Joaquim Pinto de Andrade no bolso. Isso, escondido. Nos olhos eu levava a vontade de ver que o homem a quem mais devo me emprestou.
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