08 maio 2010

Essa questão da deputada residente em Paris

Revoada, agora, de argumentos que visam reclamar justeza para o pagamento de deslocações semanais a deputado que, por hipótese, resida em Pequim - porque não? E a tais argumentos grudam-se acusações de populismo, de demagogia e de até ignorância a quem se manifestou contra essa mordomia parlamentar (leia-se, por exemplo, a crónica que São José Almeida publica hoje no diário Público, onde àquelas mesmas acusações sugere indirectamente que se acrescentem as de machismo e de fobia a artistas, a pessoas de sucesso e a políticos independentes...

Claro que se sabe que os deputados, por força do que está à cabeça no respetivo Estatuto, representam todo o País, e não os círculos por que são eleitos, mas, àparte esse estatuto de representação geral, eles não deixam de deputar e de delegar apenas e só pelos respetivos círculos, como decorre do mecanismo das suas eventuais substituições - tanto assim que não haverá substituição se já não existirem candidatos efectivos ou suplentes não eleitos na lista do deputado a substituir... Representação do país é uma coisa, deputação e delegação é outra.

Também se sabe que o facto dos eleitos, que deputam e delegam pelos círculos, passarem a representar "todo o país" e não apenas o seu círculo, decorre isso da filosofia que subjaz à proibição da formação ou existência de partidos regionais, coisa que manifestamente assim se desmotiva para que tais formações não surjam sob formas encapotadas ou tendenciais. Mas, independentemente do carácter nacional da representação política do deputado, não é alheio à deputação de interesses e à delegação dos interessados o "trabalho político" do deputado que só pode ser entendido preferencialmente como aquele que é feito no círculo que o elegeu. E é por aqui que surge uma questão de razoabilidade quer logo do candidato a deputado, quer do partido que o alicia (seja seu militante ou independente) quanto a compatibilidade entre círculo pelo qual deputa e delega, e local de residência efectiva.

É a exigência de que tal compatibilidade seja razoável, que torna absurda a hipótese de, alguma vez, os 230 deputados portugueses residirem todos em Paris (se um pode, porque não os outros todos num parlamento absurdo?), como também, sendo já tão difícil aceitar-se que alguém residente em Coimbra depute e delegue pelo Algarve, fica dificultado entender-se que um deputado, ainda que seja um só, eleito por Lisboa, possa justificar residência permanente em Pequim ou, pior, em aldeia perdida numa floresta da Indonésia à qual tenha se deslocar semanalmente no sábado e domingo, a tempo de na segunda justificar o trabalho político no círculo que o elegeu. É essa mesma razoabilidade entre círculo e residência que leva a agenda parlamentar a reservar por regra aos deputados todas ou cada um das segundas-feiras para Contacto com o Eleitorado e que é o seu “trabalho político” marcado prévia e previsivelmente. Não se trata, pois, de benefício de um fim-de-semana prolongado, pelo que se o deputado não contacta à segunda-feira com o eleitorado, e este não se confina propriamente a uma tripulação de avião, entra em falta grave.

Pelo nosso lado, na crítica aqui feita à mordomia parlamentar da deputada residente em Paris mas eleita por Lisboa, estava implícita a referência a essa falta de razoabilidade do partido que a convidou para a lista X em função da, pelos vistos, imperativa residência Y, e também à falta de razoabilidade da aceitante de tal contrato impensável para os 230 deputados ao mesmo tempo. E o que aqui se escreveu, obviamente que se aplica, por maioria de razão, aos deputados eleitos pelos dois círculos da emigração embora neste caso a razoabilidade possa ser mais fina que o azeite. Mas aí entra em campo a consciência e a qualidade moral de cada um.

Sem comentários: