Transcrito de Notas Verbais/Facebook
Havia outrora uma aldeia que apenas tinha uma estreita rua em ladeira. E no cimo da ladeira calcetada, brotava uma igreja. Daí saía todos os anos a procissão que era o momento único em que o povo dos dois lados da rua sentia indeclinávelmente o dever de percorrer a aldeia, subindo e descendo a ladeira que, no fundo apertado, dava para uns formidáveis penhascos, e estes para um precipício inibidor da grande obra pública sempre adiada de um largo – um largo, por pequeno que fosse mas que permitisse a volta do andor para um recomeço da subida sem atropelos por aquela fila de gente que para baixo ia sempre em ordem a que se juntava a disciplina da banda. Mas conseguida a volta, lá vinham atrás do andor, orando ao santo padroeiro, os que para subirem a rua, forçoso era que, no apertado regresso, acotovelassem os que ainda desciam a ladeira e que, por empurrões e encontrões, acabavam por amalgamar a comovida devoção em insultos aos devotos seus vizinhos. Esse era o momento heróico da terra e por isso o mais esperado por todos os da aldeia, o que dava um ar de batalha civil à rua com as fífias da banda dispersa a reforçar o clamor verosímil de um combate. Mas esse era também o momento escolhido pelo regedor para a afirmação clara do seu poder sobre os dois lados da rua. Para fazer notada a feição viril e valiosa do seu espírito, o regedor cumpria também ele o mesmo ritual todos os anos. No fito de ser visto por todos, porque ser visto era apenas o que o movia, aguardava na sua casa a meio da rua que a toda a procissão descesse a ladeira e avisado pela mulher que o movimento do povo era já o da subida, ele abria a porta, fazendo a aparição com passadas largas a meio da calçada, e, com o dedo polegar clipsado na algibeirinha do colete para abrir a paisagem das cadenas de ouro sobre a colónia gordurosa do balão descaído, rumava direito aos que se juntavam na confusão da volta lá em baixo, na certeza de que vindo do alto era por todos bem avistado cá em baixo. E no encontro fatal e heróico com a vizinhança que já subia e que ele tomava por enorme multidão, era então que, com voz de tenor escangalhado em contrabaixo, o regedor abria alas com mãos de nadador de bruços, ordenando: - “Deixem passar a Austeridade! Deixem passar a Austeridade!”
De nada lhe servia que o escrivão da regedoria, seguindo-o atrás em estilo livre de cérebro comunicante, o advertisse a medo com insistência de lobista: - “Senhor Regedor! É Autoridade! Não é Austeridade, diga Autoridade!” De nada isso servia e lá ia aquela espinal-medula abrindo as alas, viciada com aquele “Deixem passar a Austeridade!” que é o vício de qualquer legionário de votos.
Esta Nota foi redigida na sequência da seguinte resposta ao remetente
A quem nos acaba de enviar mensagem privada, resposta pública:
"Por quem sois! Santo Deus pai das encóspias! Seja ao Arons de Carvalho, seja a Santos Silva, ou seja mesmo a Pacheco Pereira, repetimos com todas as letras: Um jornalista, quando faz política, é um lobista; um político, a gatinhar no jornalismo, é um legionário de votos. Para desgraça geral, é disso que a casa mais gasta cantando e rindo."
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