m Quando se dá uma entrevista para fazer curriculum
Foi assim: o secretário de Estado, meses depois de eu lhe ter solicitado uma entrevista porque me parecia relevante ouvir um protagonista injustamente apagado, largos meses depois de escusas, invocações de inconveniência de agenda e agora não, respondeu que sim senhor, vamos à entrevista, chegou o momento. E foi uma longa entrevista, com as perguntas precisas a serem contornadas por longas descrições, considerandos conhecidos, vagas vitórias, inúmeros feitos, em todo o caso útil para o potencial leitor como balanço de atividade governativa e mostruário do quadro mental. Na verdade, a entrevista daria para 28 páginas e meia de jornal mas duas páginas davam para deixar para a posteridade a substância útil, de interesse público e para ilustração das minorias académicas. Pedi ao editor do momento (uma jovem editora premiada e galopante, por acaso, sem ferir a dignidade do género), duas páginas foram concedidas e as duas páginas foram feitas, tendo que ficar de fora material apenas próprio para reciclagem política. E começou a saga. Passaram dias, uma semana, duas semanas e as duas páginas não entravam no planeamento do jornal do dia. A justificação era a habitual: "não há espaço, surgiram coisas importantes". À quarta semana, era já demais e não hesitei - ou a entrevista sai hoje ou quando muito amanhã, ou então não há mais entrevista. Tornava-se já evidente a queda do governo do entrevistado e não faria sentido um quotidiano fazer de almanaque. Perante isto, lá veio a resposta: sim senhor, a entrevista vai sair mas em vez de duas páginas, tem que ser apenas uma página e meia. Lá cortei meia página, para sacrifício das minorias académicas. Mais dois dias passados, nada de entrevista na tinta fresca. Novo protesto e resposta da rapariga galopante: sim senhor, vamos publicar a entrevista mas apenas numa página. Ponderei, ponderei e anui - mais um corte desta vez já nas perguntas e respostas de interesse público. Só que mesmo assim a entrevista não havia meio de sair . Passaram mais oito dias de falta de espaço Mas eis que ocorrendo entretanto a esperada queda do governo, a rapariga galopante me diz com ares de chefe de esquadra - a entrevista sai amanhã mas tem que ser só um quarto de página... Claro que recusei meter esse Rossio na Betesga e encerrei o assunto, sem que do episódio tenha dado ou tivesse que ter dado explicações ao entrevistado - o assunto era interno e interno deveria ficar.
Passado algum tempo, cruzei-me por acaso com ex-governante, por sinal também futuro, que me convidou amavelmente para um café, parecendo-me ele politicamente à paisana. Pensava eu que queria ele falar sobre o futuro próximo do país, enfim, fazer alguma confidência, algum desabafo, ou simplesmente ouvir. E fui ao café. Mas qual futuro do país, qual desabafo sobre diplomacia, qual confidência permissível sobre relações internacionais! Ele foi direito ao assunto: "Você não sabe quanto me prejudicou por não ter publicado a entrevista que lhe dei. Dei~lhe a entrevista e você prejudicou-me..." E mais você isto, e você aquilo, até que, depois de muito hesitar, lhe expliquei as peripécias internas, pondo os pontos nos iis e mais uns pormenores que não interessam mas que têm muito a ver com as ligações promiscuas de alguns para-quedistas do jornalismo na mira de cargos com fuzileiros da política muito populares apenas quando gritam "Ao ataque!".
O assunto até seria para esquecer mas acabou por ser uma história, porque só muito depois daquele café de segundas intenções, vim a saber que o entrevistado precisava da entrevista publicada para anexar a currículo indispensável para a frequência de um curso algures em universidade estrangeira e nada mais... Foi então que perdoei à direita rapariga galopante por ter brincado às entrevistas por linhas tortas - se afinal a publicação da relevante matéria de interesse público era apenas para o currículo do interessado, então ainda bem que não houve duas páginas, nem uma página e meia, nem uma, nem sequer meia-página. Para querubins bastam os dos altares barrocos.
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