19 maio 2005

À margem. República, a causa e os efeitos.

A propósito do diário República, alguns obviamente não querem evocar as causas. Por interesse, recordam apenas os efeitos.

Sucintamente:

1 – Na sequência dos acontecimentos do 11 de Março de 1975, a parte da Redacção do diário República então assumidamente afecta ao PCP ou na zona de influência do PCP com elementos que tinham entrado para o jornal por obra de um acordo de partilha que marcou o nebuloso termo da antiga direcção Carvalhão Duarte/Alfredo Guisado, abandonaram o jornal rumo a lugares-chave noutros meios de comunicação carecidos de «controlo» - o Século, o DN, a televisão e a rádio estatais.

2 – Com esse desfalque, o precário mas desejado e até reclamado pluralismo do República perdeu a argumentação da aparência.

3 – Assim, a 2 de Maio de 1975, dois Jornalistas do diário República , apresentaram uma moção em plenário convocado exclusivamente para esse efeito e que, em substância, preconizava – a) um Estatuto Editorial para o jornal (a ser elaborado pela Direcção e votado pela Redacação); b) a eleição de uma Comissão de Redacção (designação que, desde sempre sugerida por Salgado Zenha nomeadamente nas páginas do próprio República, antecedeu a já vulgarizada de Conselho de Redacção). Os autores da moção foram o signatário e o então jornalista Jardim Gonçalves, agora, passados estes anos todos, chefe de gabinete do Cardeal Patriarca de Lisboa.

4 – Nesse dia 2 de Maio, o jornal não se publicou precisamente pelo prolongado plenário e acesas discussões que a dita moção provocou, cujos dois únicos subscritores ficaram isolados – a proposta para que o jornal assumisse um Estatuto Editorial que não tinha foi literalmente vencida e igualmente vencida ficou a proposta para a eleição de uma Comissão de Redacção com estritas finalidades éticas e deontológicas.

5 – Quem mais lutou contra tais propostas foi precisamente o Director Comercial do jornal, Álvaro Belo Marques, estranhamente chamado a participar no plenário redactorial. A argumentação desse responsável foi decisiva para acabar com algumas poucas hesitações que pendiam para a provação da moção – esse Director Comercial que escassas duas semanas depois retiraria o nome de Raul Rêgo do cabeçalho para aí fazer imprimir o seu, foi dizer, em última análise, que com um Estatuto Editorial o República perderia vendas e proventos e que com uma Comissão de Redacção seria o fim da estabilidade laboral, o fim dos salários e o fim do jornalismo naquele primeiro andar da Rua da Misericórdia. A democraticidade interna e o escrutínio deontológico, para esse homem, era uma catástrofe. Seria agora desprimoroso dizer os nomes de quem secundou essa argumentação do Director Comercial mas há bastantes consciências que devem sentir-se pesadas.

6 – Nessas circunstâncias, nesse mesmo dia 2 de Maio, eu apresentei ao Administrador do República, Gustavo Soromenho, a minha carta de demissão do jornal com efeitos imediatos, partindo para férias de que não usufruía havia muito, alertando a administração para os próximos passos do Director Comercial. E parti mesmo para férias e para longe de Lisboa.

7 - Quando, a 19 de Maio, Álvaro Belo Marques usurpa a direcção do jornal mandando serrar o nome de Raul Rêgo da zincogravura que acompanhara anos de resistência e de luta pela liberdade de Imprensa, eu já não pertencia ao jornal, estava muito longe de Lisboa e apenas a precipitação do acto é que me surpreendeu.

8 – No dia seguinte ao da usurpação (dia 20) regressei a Lisboa e contactei de imediato os representantes dos trabalhadores do República, disponibilizando-me reentrar na Redacção, com duas condições: a) afastamento imediato de Álvaro Belo Marques da autonomeação como director; b) clara disposição dos trabalhadores ao diálogo com a administração legal e legítima visando-se sanar o conflito. Na verdade, quanto ao primeiro ponto, Álvaro Belo Marques foi afastado, mas, quanto ao segundo, só muito tardiamente é me apercebi que nem a administração nem os que faziam o papel de representar os trabalhadores queriam o diálogo e muito menos queriam sanar o conflito. Havia reservas mentais de parte a parte, algumas dessas reservas com direito a calculadas indemnizações. Algum dia será feita a história dos respectivos interesses – porque havia e houve interesses que em nada tiveram a ver com a invocada luta pela Liberdade de Imprensa. Não é para agora nem para aqui.

9 – Assim sendo não é para esse cobarde Atento que se serviu da boa vontade e acolhimento do Barnabé e do BdE para me imputar actos que nunca pratiquei nem podia praticar, não é para ele que a resposta está dada. A resposta está dada para os Desatentos que ainda por aí andam pela Universidade Nova e pelos escadotes da Política, escrevendo ou tecendo considerações sobre o República, confinando a questão ao 19 de Maio da ocupação e da usurpação onde eu já não estava nem estaria, mas omitindo deliberadamente aquele 2 de Maio onde estive e onde voltaria a estar, omitindo a recusa liminar da elaboração de um Estatuto Editorial e omitindo a recusa da eleição de uma Comissão de Redacção – recusas essas que não foram seguramente abonatórias nem para a Liberdade de Imprensa nem para os jogos de interesses que o episódio suscitou.

10 – Resta dizer que o velho zinco do cabeçalho do República de onde Álvaro Belo Marques purgou o nome de Raul Rêgo, foi por mim custosamente recuperado e, anos depois, bons anos depois, doado à Fundação Mário Soares, em acto público, onde está e bem. É um símbolo. Símbolo sofrido. Símbolo mesmo.

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