04 fevereiro 2006

José Cutileiro. Tudo no mesmo saco, deformações de diplomata

Escreve hoje o embaixador José Cutileiro que «a vitória do Hamas nas eleições palestinianas só surpreendeu quem insistia em não entender o mundo» e, a seguir, exemplifica com a vitória do ANC na África do Sul e até vai buscar a já arqueológica ascensão do arcebispo Makários em Chipre. E pela boa regra de não esquecer eventual excepção a meter tudo no mesmo saco, acrescenta o embaixador que «há mais casos» pois «em lugares de grande fractura e iniquidade recíproca são os extremistas que merecem a lealdade da tribo». Assim mesmo: os extremistas e a tribo.

É deveras cómodo, mesmo que a propósito do Hamas, filosofar com os exemplos incómodos dos outros – Makários e ingleses, Mandela e brancos do apartheid. Mas os portugueses estarão assim tão isentos de provocar as «lealdades da tribo» que não mereçam do preclaro embaixador, um caso, um caso ao menos?

Porque é que José Cutileiro, em vez de Makários que já não diz nada à maior parte dos viventes, ou mesmo em vez de Mandela que ninguém, absolutamente ninguém (só um tolo) coloca no mesmo plano do líder do Hamas, porque é que Cutileiro omite, passa ao largo, não fala dos «casos» saídos da descolonização portuguesa que nos dizem quotidianamente respeito?

Além disso, o que é esse «entender o mundo» de que o embaixador sugere ter a bitola? E quem é que pode afiançar que «entende o mundo», que os outros não entendem, pelo que que só os que não entendem é que ficaram surpreendidos com o Hamas? E porque não dizer que a vitória do Hamas nas eleições palestinianas só surpreendeu quem insistia em não entender, não o mundo, mas a corrupção que desde há muito minou a Fatah e que isso pouco ou nada tem a ver directamente com Israel, com o Estado de Israel? E muito do investimento europeu não terá a ver com isso - isso da Fatah semelhante ao isso das máfias - como de resto tem acontecido um pouco por toda a África, onde extremistas e títeres, afagados pelas diplomacias, são tratados pragmaticamente como repositórios de lealdade tribal supostamente temível, apesar de espezinharem o fundamental dos direitos humanos, o essencial das regras democráticas e sobretudo o mínimo exigível da boa governação? Basta referir que até o pequenino Estado de Timor tem a sua Fatah e o seu Hamas, ainda o petróleo não sai a jorros. Claro que há um mundo que Cutileiro manifestamente não entende e que só o pode surpreender, se continuar a colocar as eleições do Hamas e do ANC no mesmo plano. Não se trata apenas de deformações de diplomata.

Sem comentários: