Curiosos, por certo, mas porque são curiosos de vários quadrantes a coincidência das curiosidades acaba por ser ela própria curiosa, pois tais curiosos, que são bastantes, perguntam-nos qual a origem ou significado do azulejo que ilustra a crónica de Fernanda Leitão
A todos se responde tratar-se de um pormenor dos painéis do Senhor Roubado, monumento já de 1744, localizado à saída da Calçada de Carriche, num pequeno largo colado à estrada para Odivelas (Rua Pedro Álvares Cabral/Rua do Sr. Roubado).
E porque hoje é domingo, e porque, além de estarmos já no século XXI, a diplomacia já não tem os ciclópicos trabalhos do exercício da PPUE, não é mau recordar como se roubava em Portugal no século XVII e as penas que se aplicavam a quem se apanhava a roubar (cliquem sobre as fotos, pelas legendas) .
O Senhor Roubado tem então a ver com um roubo efectuado na igreja de Odivelas, em 1671, alegadamente pelo jovem António Ferreira, que sorrapiou do altar-mor e de outros altares dessa igreja, as contas do rosário de N. Sra. do Rosário, as vestes do Menino Jesus e da Senhora do Egipto, os Vasos Sagrados, entre outros, escondendo-os numa mata de caniços onde está hoje o tal Senhor Roubado. Claro que neste século XXI, objectos e locais teriam outros nomes, outras designações a que a civilização concede o segredo de justiça.
Mas naquela época, de extrema religiosidade, a dimensão deste caso foi tal que, quando chegada a notícia à capital, a rainha D. Luisa de Gusmão (mulher do Rei D. João IV, e nessa data regente do reino) enviou missivas a todo o reino, e foram afixados éditos prometendo recompensa em dinheiro e um emprego na justiça ou na fazenda, a quem denunciasse o autor do crime; a corte pôs luto e foram feitas procissões nas ruas. O que equivale a dizer que, se fosse neste século XXI, o Palácio de Belém poria gravata preta e o jack a meia-haste, além de manifestações às quais se dispensaria licença do governo civil.
Claro que chegou o momento de se dizer que esta prosa não está a dar grande trabalho pois estamos a seguir linha alinha a descrição que a câmara de Odivelas faz do caso com aquele à vontade com que se descreve casos bicudos que já não afectam nem brigam com eleições locais – o século XVII está longe e os portugueses, por regra, são muito verdadeiros sobre o que aconteceu há muito tempo ou sobre o que está muito longe.
Pois diz essa câmara, e acreditamos que seja verdade, que encontrados os objectos escondidos, e mais tarde confessado o roubo sacrílego por António Ferreira, após ter sido apanhado a roubar galinhas (imaginem! Galinhas!), por uma criada do Mosteiro de Odivelas (e logo do mosteiro!), e tendo-lhe sido encontrada na bolsa a cruz de prata do remate do vaso dourado do Santíssimo, foi julgado em Lisboa e condenado a ser "arrastado e levado à praça do Rocio desta cidade, aonde lhe serão decepadas ambas as mãos e queimadas à sua vista, e depois seu corpo será queimado ...".
Acrescenta a câmara que, no local, numa oliveira, foi colocado um padrão de cruz, em madeira, que, mais tarde, o religioso António dos Santos transformou no padrão do Senhor Roubado, construído com pedra cedida pela pedreira da Paradela, e que o próprio realizou, pagando o restante trabalho com esmolas. Estava, pois, Portugal longe dos fundos europeus – se já os houvesse, o religioso António dos Santos furaria o esquema, como hoje se tornou corrente dizer a propósito dos roubos de galinhas do século XXI.
Diz ainda a câmara, por certo através de dedo de mestre em património (tal como os dentistas, conseguem explicar ao paciente que o canino dorido é tão belo como a Torre Eiffel), o Monumento ao Senhor Roubado é composto por um recinto, em forma de trapézio isósceles, com uma superfície de dez metros de comprido por oito de largura, e o arranjo arquitectónico apresenta-se a modo de templo descoberto (exactamente, coisa semelhante à boca aberta dentista). Precisa o presuntivo mestre que isso e uma espécie de altar ou oratório, constituído por um alpendre assente em quatro colunas toscanas e fechado por parede na parte posterior (gostamos particularmente do recurso às colunas toscanas!), encontrando-se, no interior disso, o padrão que rememora o roubo sacrílego. Existe ainda no recinto um púlpito, conferindo-lhe a feição de lugar consagrado ao culto divino e na face ocidental, um paredão inteiramente forrado de azulejos monocromáticos; nas partes inferior e superior, doze quadros ou painéis historiados, cada um composto por 72 azulejos, com legenda explicativa sobre as cenas do roubo.
Posto isto, que vem de material insuspeito da câmara de Odivelas, está explicada para os curiosos, a ilustração escolhida para a Carta do Canadá, de Fernanda Leitão.
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