nem faz parte de catecismo que condene,
mas, se se defende princípios, é em nome de princípios que se altera;
e se se defende interesses, é em nome de interesse que se muda.
E não uns por outros, naquela permanente excepção sediciosa
que é o pior dos dogmas nas relações internacionais
e nada tem a ver com a prudência.
PORTUGAL, tudo indica, vai reconhecer o Kosovo, um processo de independência conhecido e esmiuçado. Nada temos contra o Kosovo e muito menos contra a independência do Kosovo na condição de que todo o mundo seja independente, embora seja improvável que, nos tempos mais próximos, todo o mundo deixe de estar dependente. Mas enquanto isto não acontecer, as opções nas relações internacionais não são muitas, arrumando-se, em todo o caso, numa de duas categorias – na dos princípios que enformam o multilateralismo e vão dando solidez aos pressupostos do direito internacional, obrigando os estados, isoladamente ou em grupo, a aceitar a utopia da interdependência e, enfim, do sistema mundial, ou, no outro extremo da linha, na dos interesses de cada estado, com maior ou menor denominador comum entre vários estados em função de interesses em excepção convergente. Por isso, é lícito perguntar se o estado português se pauta pelos princípios, designadamente do direito internacional e do multilateralismo, ou pelos interesses, pelos seus interesses próprios ou por interesses alheios de que esteja indeclinavelmente dependente, embora não subjugado.
Ora, uma escolha destas, não cai dos céus e muito menos será coisa larvarmente assegurada por característica genética. Sendo escolha do estado, é opção assumida pelos órgãos de soberania no quadro constitucional em que se movem, agem e são sufragados. E aqui é que bate o ponto do Kosovo.
Não é uma questão de custos (os custos do reconhecimento contra os custos do não reconhecimento), não é uma questão de oportunidade (o haver já um maior número de reconhecimentos em que um mais que se lhe juntar funcionará já como faz de conta), não é uma questão de telhados de vidro (ter ou não Kosovos de trazer por casa), não é uma questão de oportunidade diplomática (conveniências, por exemplo, no jogo de votos para pretensões nas instâncias internacionais) – é uma questão de escolha entre princípios nas relações internacionais e regras para a convivência internacional, ou interesses cujas regras obviamente visam a fruição de bens ou vantagens, seja tal fruição imediata e visível, ou diferida no tempo e, portanto, vantagens apenas não cifradas para alguns que pela natureza das coisas também não decifram.
Essa escolha, naturalmente, pertence ao governo, pelo que, num sistema democrático, o governo, para tal escolha de estado, está vinculado a compromissos de programa pelos quais foi sufragado. Para se acreditar num governo, em matéria de relações internacionais, tais compromissos têm que ser e devem ser respeitados, sob pena de descrédito.
Em programa, este XVII Governo afirmou pretender «contribuir para uma ordem internacional assente no multilateralismo efectivo, como forma de enfrentar as graves ameaças da vida internacional...», e afirmou, por entre tudo o mais, que «a matriz das relações internacionais por que nos batemos deve ser a que assenta na Carta das Nações Unidas, no reforço do papel do Conselho de Segurança e da credibilidade das demais instituições do sistema das Nações Unidas, bem como na cooperação aberta entre várias organizações regionais, tenham elas incidência nas áreas da diplomacia, da segurança, etc., etc., etc. …»
É de crer que, se este governo tivesse, ao invés, colocado no seu programa, por hipótese, ao lado, abaixo ou mesmo acima, as ressalvas mitigadas de «um forte ou - para melhor tom - fortíssimo empenho no multilateralismo», de «um continuado zelo pelo direito internacional» ou mesmo de «um firme contributo para o reforço e reforma da ONU», e com tais ressalvas, enfim, que iria garantir «sobretudo os interesses do país em função das circunstâncias, alianças e entendimentos que melhor garantam tais interesses de Portugal no mundo», não era lá por isso que não seria sufragado como foi. E nesse caso, o Kosovo e tudo o mais que se queira ou quisesse (cada situação é sui generis), haveria de caber nos compromissos de acatelamento dos interesses próprios, ficando a honra salva. Até se poderia invocar, para este reconhecer este Kosovo hoje, ou outro amanhã, o interesse nacional da solidariedade para com outros interesses, independentemente do muito respeito pela Carta e pelas Nações Unidas, pelo cumprimento dos rituais na Assembleia Geral da ONU ou pelo alto valor das peças jurídicas do Tribunal Internacional de Haia que, pelo primado da política do facto consumado ou por via de um multilateralismo que mais não será do que somatório de bilateralismos, ficam ineficazes.
É certo que Portugal ao reconhecer agora e apenas agora o Kosovo, não quebra qualquer compromisso internacional, sendo duvidoso que ganhe com invocada solidariedade do mesmo tipo. Mas quebra um compromisso interno que corresponde a um item programático do governo, redigido com a ênfase de quem valorava princípios para contrariar a doutrina dos interesses, doutrina essa que estava a minar a confiança na política externa e a violentar a unidade da acção diplomática.Carlos Albino
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