05 agosto 2011

O Zé-Povinho tem fôlego

Por certo, o Zé em traje das horas vagas de diplomata
Não, o Zé não morreu. Apenas tem andado muito entretido e bem entregue às distrações da vida, ou também ele nestes anos não tivesse gastado e consumido muito acima das suas posses. É até voz corrente que ele próprio, o Zé-Povinho, aprendeu que esta sua distração já teve um nome: alienação. E tanto assim que, ultimamente, nas raras aparições públicas do Zé – desde os anos 80 do século passado, apenas tem sido visto em comemorações e efemérides da sua vida – ele tenha rematado todos os agradecimentos com esta declaração comovida: «Tenho andado alienado». O que toda a gente tem compreendido e até acolhido com simpatia, tratando-se de um arquétipo. E houve até alguém que lhe disse isto mesmo, por ocasião do centenário - «Zé! És um arquétipo! Regressa ao teu lugar de descanso e reaparece quando fizeres 125, 135 ou mesmo 150 anos, enfim, numa dessas datas em que o Estado costuma tratar os vivos como mortos e os mortos como vivos, mas a ti sempre como arquétipo!» É claro que a palavra arquétipo fora dita na pressuposição de que o Zé-Povinho não a entendesse. Puro engano. «Eu, arquétipo?», começou por perguntar o Zé, todo empertigado e, diga-se de passagem, bem vestido, muito embora conservando aquela fieira de barbicha que sempre o identificou fosse qual fosse o disfarce - esses pêlos do Zé, agora, em nada denotam já aquele arrepiante ADN do Neandertal, são pêlos aparados pela finura de uma sofisticada Turbovac. «Eu, arquétipo? Um modelo que serve de matriz?», repetiu o Zé, medindo o grau de surpresa dos que pensavam que ele, tirando partido dos prazeres da alienação, tinha permanecido com o pobre léxico de umas vinte ou trinta palavras de feira tapadas pelo tal barrete enfiado como um monossílabo na cabeça outrora gordurosa. «Arquétipo só, não! Serei mais uma figura vicentina que faz a ligação entre a política e a sociedade. Sempre fiz e faço essa ligação, ainda que me julguem retirado!», continuou o Zé, e disse mais, muito mais, deixando os presentes estupefactos, enquanto cofiava a perfeita barbicha para reforçar o recorte de algum conceito mais profundo. E como ele cofiou quando pausadamente pronunciou aquela palavra – vi-cen-tina! É que esperavam, nesta aparição, ver o Zé com ar de Cristo com fato remendado, ou piolhoso de impostos, ou desdentado da carestia, ou tonto pela porca da corrupção, sem nada perceber do que se passasse à volta, mas aguentando tudo e preferindo à força bruta da resposta, a resistência moral sem limites da pergunta que tinha sempre na ponta da língua quando o poder perante ele desfilava. Mas isso foi há 135, 100, 75 anos! Para surpresa dos que, por instinto, ainda o imitam fazendo o manguito, e o reverenciam como o filósofo popular do queres fiado toma, o Zé, que é muito mais que arquétipo, é figura feita de milagre na transubstanciação da caricatura, tirou mestrado, doutoramento, segundo consta, é professor auxiliar com agregação e perfume adequado, pode muito bem encaixar-se num elenco ministerial como titular dos Estrangeiros, e, se até tem perfil de candidato presidencial quanto mais não terá para comentador de televisão que é aquela coisa que o Zé magistralmente há dias definiu como o único sítio do país onde se entra imbecil e se sai inteligente. Como vêem, o Zé-Povinho não morreu, apenas andou alienado acima das suas posses. Tem fôlego.

Carlos Albino

4 comentários:

José Martins disse...

Eu cá um Zé do Povinho deliciei-me com a peça, brilhante, do meu prezado amigo Carlos Albino.
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Bem eu nasci mesmo Zé do nobre Povinho desta terra lusa.
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Misturei-me com outra raça a do "povão" e não me adaptei a ela.
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Preferi continuar um Zé do Povinho.
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Mas há anos um nobre (era mesmo da nobreza portuguesa, embora falida) que eu servi, num rascunho que teclei, naquelas máquinas da década 40 do século passado, estava designada a frase, POVOLÉU, que desconhecia e entendi então, depois de consultar num dicionário e ler o significado, eu também estava inserido nessa casta de gente e um Zé do Povinho.
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E assim continuarei, até morrer, um Zé do Povinho desta terra sagrada e de Santa Maria. Amen
José Martins

Anónimo disse...

Começou já a metódica destruição metódica das coordenações de ensino estrangeiro demolindo-se um trabalho sério que estava a ser feito.
Provavelmente há saudades dos governos AD quando foi nomeada para Paris alguém de Matemática que se fazia acompanhar de um intérperte nas reuniões oficiais com o governo francês. Estamos a regressar ao nacional-saloismo!

Anónimo disse...

Como bem diz Soares nunca encarou senão viver em Portugal. Positivo é por isso que Cravinho, português, tivesse sido escolhido para chefiar a Delegação da UE em Delhi. Para trás ficarão os seus comentários jocosos, em público, nada oportunos, aliás, sobre os "apátridas" que medram nos recintos multilaterais. Bem vindo pois ao Clube dos Apátridas, que é também já o de seu Pai, no BERD. As nossas elites vão-se esvaziando pouco a pouco para a cena internacional, ficando apenas aqui, cinzentão ou dependente, quem se bate por um mero lugar de Chefe de Gabinete, seguro que poderá aí chegar quanto menos experiência tiver melhor e melhor aptidão para ser manietado.

Jorge da Paz Rodrigues disse...

O Zé Povinho tem fôlego e paciência, muita paciência...