Recenseamento, uma cruz. Imagine, caro notador, que presenciava a seguinte cena em algum consulado português modernaço e filho já do choque tecnológico - um funcionário consular, com voz teatralmente embargada pela força das circunstâncias, ao redigir o assento de óbito do infeliz marido, ter que perguntar à desditosa viúva: «Diga-me, minha senhora, o seu falecido esposo quer recensear-se?». Imagine como esta pergunta que a infoburocramática das Necessidades torna imperiosa, não provocaria segunda e terceira edição de pranto por parte de quem tantas razões já teve para chorar do Estado! Pois a cena é possível.
É que por aí já se tornou obrigatório, nos consulados, perguntar pois a quem aos consulados se dirija, sobre intenções de cada um em se inscrever nos cadernos eleitorais. O módulo com tal finalidade foi, há cerca de um mês, adicionado ao Sistema Integrado de Gestão Consular, pelo que, aparentemente, a verdade cívica deveria correr não tanto sobre rodas mas sem rodeios – Inscreve-se? Não se inscreve? E se não se inscreve, como é? É assim?
Só que, o sistema integrado começa logo por se manifestar desintegrado: a tal pergunta sacramental – quer recensear-se? não quer? - deve ser feita obrigatoriamente pelos serviços de atendimento consular mesmo que os directos interessados na prestação de algum acto administrativo não se encontrem presentes mas representados... E lá os funcionários consulares têm que digitar para o sistema integrado, como se estes tempos fossem ainda os das mangas de alpaca e burocrático cuspinho da boca, a informação de que «o cidadão não se encontra fisicamente presente» facto que para o compadre computador integrado era já mais que evidente.
Enfim, nenhum mal daqui viria ao mundo. O imbróglio piora é quando precisamente implica quem infelizmente já está no outro mundo...
Então não é que aquela mesma pergunta – quer recensear-se? não quer? – não tem que ser obrigatoriamente feita ao interessado, tenha este BI válido ou não tenha, seja residente ou esteja em trânsito, ou mesmo... esteja vivo ou morto? Não é que a questão do recenseamento tem que ser obrigatoriamente colocada mesmo quando se trata de executar um assento de óbito do falecido?
O sistema foi concebido de tal chorosa forma, que não é possível ao computador assumir a resposta evidente de que fulano, falecido ou sem BI válido «não pode recensear-se»... Pois esse sistema que é, afinal um sistema mal recenseado ou que nem a junta de freguesia do Mar da Palha aceitaria para os cadernos, exige ao funcionário amante da verdade, que minta e que, por conseguinte, pregue nos assentos do Estado uma valente mentira de Estado (que também as há e talvez a pontapé).
E minta como?
Pois, nos termos em que aquela mar da palha está, o funcionário consular que, em nome da verdade, deveria assinalar em algum quadrado do género do euromilhões uma simples cruzinha no «não pode recensear-se», ele só pode mentir de duas formas, mentindo sempre de uma forma ou de outra, para que o «sistema» não volta a fazer a pergunta: ou dá a falsa e mentida resposta de que o utente não se encontra presente (estando com um BI inválido ou nem podendo estar, estando morto), ou dá a falsa resposta para a memória do «sistema» de que o utente não pretende recensear-se, o que também não será verdade caso, entretanto, o cidadão tenha regularizado a situação que o impedia de se recensear naquele mar da palha.
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