05 novembro 2006

A conselheiral batalha. Moral administrativa

Isenção. Todos nos recordamos da conselheiral batalha movida, no início do ano, por Diogo Freitas do Amaral e cujo objectivo central, a bem da verdade, era defensável e até desejável – o recrutamento do pessoal especializado do MNE através de concurso público. A batalha deu para o torto apenas com a manobra de flanco das exonerações, num cenário de contradições, de pedidos difusos ou pressões informais, e de privilegiada defesa de interesses pessoais pondo em causa a lisura do Estado em trocas baldrocas, com gente a provar que tinha mais licenciosidade que licenciatura. Nessa manobra, é certo, sacrificou-se gente e postos aparentemente indispensáveis, na circunstância, entre outros casos, o da conselheira social na Holanda qualificadamente a acompanhar o dossier dos portugueses vergonhosamente explorados e cujos desenvolvimentos mais recentes acabarem por comprovar não se ter tratado de empolamento jornalístico mas decorrência também da impune lassidão diplomática e consular.

Essa conselheiral batalha teve dois momentos-chave e que podem ser sinalizados no calendário. Um primeiro momento, com o comunicado oficial do MNE de 2 de Fevereiro, e um segundo momento, com a resolução do Conselho de Ministros em 29 de Junho aprovando uma Proposta de Lei sobre o Estatuto aplicável do pessoal técnico superior especializado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, anunciando-se com isso um processo de provas públicas para provimento das vagas a preencher, mas com uma excepção – é que o novo regime não seria aplicável à Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER)…

Foi assim que a 2 de Fevereiro se deu a conhecer que o Ministro informara por telegrama os Embaixadores dos países onde se encontravam colocados conselheiros e técnicos especializados, sobre o exercício de corte de despesas no Ministério dos Negócios Estrangeiros, invocando-se «um compromisso assumido pelo Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros com o Ministro de Estado e das Finanças no sentido de dar cumprimento às exigências de contenção do Orçamento de Estado de 2006», ao mesmo tempo que se chamava a atenção de que tais cortes se inseriam «no quadro da reestruturação do Ministério dos Negócios Estrangeiros», e se anunciava então que «vai ser criado um quadro técnico especializado, cujo decreto ficará pronto até ao Verão, que terá três pontos fundamentais: - os futuros conselheiros e adidos serão escolhidos por concurso público e só progredirão na carreira também por concurso; - serão revistas as despesas de representação; - não poderão permanecer em posto mais de seis anos seguidos, devendo prestar serviço em Lisboa por cada seis anos passados no estrangeiro».

De facto, com o Verão mal entrado e na véspera de Freitas do Amaral abandonar as Necessidades, o Conselho de Ministros aprovou uma proposta de diploma com o parlamento como destinatário. Foi o que se disse. A proposta de lei, para que conste, pode ser consultada em Notas Formais, a partir deste momento.

Era pois de esperar que o Parlamento recebesse, agendasse com a urgência política que o caso justificava, debatesse, aprimorasse (designadamente com a abolição da isenção da REPER), enfim, aprovasse, rejeitasse, ou, pelo menos, desse andamento visível, que, passados estes meses todos, se resolvesse uma questão crucial para a actividade externa do Estado e se colocasse um ponto final nas conselheirais batalhas, as passadas e as que seriam de evitar no futuro. Ou seja: se acabasse o quadro da moralidade administrativa colocado no cavalete.

Mas não. Um episódio recente, não se diz que venha frontalmente ao arrepio da intenção legislativa moralizadora, ou que o ponha em causa na medida em que a REPER foi à partida isentada da ingente tarefa moralizadora, não se percebendo porquê, pois a moralização das admissões seria por aí que deveria começar, mas o episódio vale pelas datas do autorizar depois com efeitos antes, para só muito depois se concretizar com efeitos para quatro meses atrás. Não ajuda à moral, mesmo isentada.

E que episódio? Sucintamente, passou-se isto:

- Em 26 de Julho (um mês depois do Conselho de Ministros aprovar a proposta de diploma no sentido de concursos públicos, isentando as admissões para a REPER), o Primeiro Ministro e o Ministro das Finanças, em despacho, autorizam a título excepcional, o desbloqueamento de um lugar de conselheiro técnico na REPER, com efeitos a partir de 26 de Junho (três dias antes da aprovação da proposta de lei supostamente moralizadora das admissões de funcionários deste grau). Será que já havia conselheiro sem sinal de que haveria autorização?

- A referida autorização só foi publicada, em 6 de Setembro (DR, 2.ª série, n.º 172), para a habitual produção de efeitos legais… Será que… entende-se?

- Ora aí está, para que se entenda: a concretização da autorização só ocorreria com o despacho do SEAAE, Manuel Lobo Antunes, apenas em 21 de Setembro, com a nomeação de Maria do Céu da Silva Pereira, para exercer o cargo de conselheira técnica na REPER/Bruxelas, «com efeitos a partir de tal 26 de Junho». Mas porquê, 26 de Junho? Acaso, já estava em funções antes da autorização e da concretização?

Obviamente, nada temos contra Maria do Céu da Silva Pereira, muito menos (nem tínhamos que ter) contra que exerça as funções de conselheira técnica na REPER, muito menos ainda contra a sua competência curricular e profissional para o cargo – tem-na, por certo, porque deve possuir currículo «designadamente no âmbito da problemática da integração europeia» e «experiência profissional não inferior a seis anos», como se exige desde 1985 para tais casos. Não é isso o que está em causa, muito embora a folha oficial devesse tornar público currículo e experiência.

O que está em causa é o princípio, embora, sublinhe-se, se tenha isentado a REPER desse princípio. E o princípio, para o caso do pessoal especializado das Necessidades, é o de «de pôr fim à regra da livre nomeação desse pessoal pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, substituindo-a pelo recrutamento mediante concurso público, por óbvias razões de moralidade administrativa», como consta na exposição de motivos da proposta de lei que o Governo aprovou em 29 de Junho. Longe de nós, repita-se, considerar que o «descongelamento excepcional» despachado pelo PM/MF em 26 de Julho «com efeitos a partir de 16 de Junho» e apenas concretizada em 21 de Setembro com os mesmos efeitos, só por si, vai ao arrepio da moralidade administrativa. Mas, repita-se também, não ajuda.

Mais: seria lícito admitir que o PM/MF justificassem o descongelamento excepcional com o aceitável argumento de que a REPER entraria em inevitável crise funcional sem a abertura de mais um lugar de conselheiro técnico. Todos os contribuintes certamente compreenderiam um jeito de cobertura orçamental para essa iniciativa de salvação. A justificação não foi essa, mas aquela longa e pouco moralizadora chapa que se repete nas suas 55 palavras e que reza assim:

«A crescente importância do papel de Portugal na cena internacional arrasta consigo relevantes compromissos para a sua política externa, implicando um reforço constante da actividade das missões diplomáticas, gerador de necessidades de pessoal especializado que não podem ser satisfeitas através dos instrumentos de mobilidade previstos na lei e que justificam a adopção de uma medida de descongelamento excepcional, desbloqueando os lugares indispensáveis»…

Porque não se foi directo ao assunto, vincando que a REPER está isentada da moral administrativa, com efeitos um mês antes e para concretizar quatro meses depois? Não ajudaria isso mais à moral administrativa, do que manifestações secundárias de barroco tardio, sempre que se fala de mais um cargo na Europa, para a Europa ou junto da Europa?

A proposta de lei sobre Conselheiros e Adidos está na íntegra em Notas Formais.

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