31 janeiro 2007

CARTA DO CANADÁ. Fernanda Leitão. Caso para pensar

A CASA DA MÃE JOANA

Fernanda Leitão

Maher Arar é um sírio que escolheu viver no Canadá por acreditar que este país respeita os Direitos do Homem. Estabeleceu-se em Otava, casou com uma senhora do seu país de origem, tem dois filhos e obteve a cidadania canadiana. Engenheiro de telecomunicações, depressa obteve sucesso nessa carreira. Parecia estar realizado o sonho do jovem sírio.

Mas tudo se quebrou e desfez em Setembro de 2002 quando, ao fazer escala num aeroporto dos Estados Unidos, foi preso pela polícia local, histérica com o seu nome, a sua barba, o seu país de origem e, principalmente, a confirmação dada pela Real Polícia Montada do Canadá quando lhe foi perguntado se o portador daquele passaporte era ligado ao Al-Qaeda. De pronto, como quem se desfaz de um trapo, a polícia americana deportou Mahar Arar para a Síria, apesar de o acusado sublinhar que ali correria perigo de vida por se opor ao regime local. Esteve mais de um ano preso na Síria, torturado, mal tratado, sempre à espera de ser morto pelos seus algozes. Isso só não aconteceu porque sua mulher, a aparentemente frágil Moira, saltou obstáculos, congregou apoios, alertou o governo canadiano da altura, o do liberal Paul Martin. As autoridades canadianas não largaram o governo sírio até o seu cidadão regressar a Otava. Regressado, Arar procurou apoios e contratou um advogado, iniciando um implacável processo de esclarecimento dos factos e de reabilitação do seu nome. A revolta de todo o país transformou-se em apoio, em exigência democrática de explicações. O comandante da Real Polícia Montada, Giuliano Zaccardelli, negou perante as autoridades judiciais ter dado essa informação à CIA. O governo de Martin foi substituído pelo governo conservador, e minoritário, de Stephen Harper, um seguidor ostensivo de Bush e das suas políticas e, por isso, Maher Arar e o país em geral, esperaram o pior.

Não foi assim porque o Canadá é uma monarquia parlamentar que conta com todo um dispositivo de vigilância sobre os governos e, portanto, de defesa do povo. O aparelho de justiça seguiu em frente, cortou a direito. Zaccardelli que acabou por reconhecer ter mentido, assim assumindo que a falsa informação sobre Arar saíu da sua corporação. À mentira juntava-se o abuso inqualificável de entregar um cidadão nacional à polícia de um país estrangeiro. Encostado à parede, Zaccardelli pediu a demissão, saíu de cena sem honra nem glória. A justiça canadiana concluíu pela inocência de Maher Arar. Logo de seguida, Arar processou o estado canadiano exigindo que o governo lhe pedisse desculpa e uma indemnização de doze milhões de dólares pela sua carreira profissional destruída, pelo seu nome enxovalhado, pela prisão e torturas, pelo sofrimento da mulher, dos filhos, e dos seus próprios pais e irmãos. Os olhos de todo o país ficaram colados ao primeiro ministro Harper quando o tribunal deu razão às exigências de Arar. O empertigado Harper, tão colaço de Bush, tão concordante com a guerra do Iraque, tão ferozmente contra o protocolo de Kioto, ficou entre o muro da opimião pública canadiana e o barranco em que o seu ídolo está metido.

E foi, recentemente, o golpe de rins: o primeiro ministro pediu desculpa e ordenou o pagamento. Sem ninguém lhe pedir mais nada, até se apresentou como defensor do meio ambiente...

O pano desceu sobre este drama quando, dirigindo-se a todo o país pela televisão, Maher Arar, olhando bem de frente, agradeceu o apoio que recebeu de todos os pontos do país e disse muito claramente: “tenho orgulho de ser canadiano”. Bem pode ter orgulho de um povo que não quer ver o Canadá transformado na Casa da Mãe Joana.

Segundo tenho lido e ouvido, também a embaixadora Ana Gomes, actualmente eurodeputada, não quer que Portugal se transforme na Casa da Mãe Joana e exige que seja esclarecido esse embróglio dos aviões da CIA que pousaram em aeroportos portugueses para transbordo de prisioneiros islâmicos que permanecem sem julgamento e sujeitos ao mais vil tratamento.

A diplomata exige também que se apure o célebre escândalo do “petróleo por comida”, através do qual, a coberto da ONU e com os propósitos humanitários do costume, uns cidadãos portugueses fizeram belos negócios. Como todos nós, deste lado do mundo, a compreendemos e acompanhamos! Mas inquietos, muito inquietos, porque Portugal continua, como se diz em jargão político, deficitário em justiça e governos isentos, para descanso e impunidade de Barrosos, Portas, Figueiredos, Lopes e outrões varões assinalados...

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