23 abril 2007

┌ Ponto↔Crítico ┐ 7 Tratamentos de deferência e declarações enganosas

Toda a gente sabe que alguém estranho na Casa mas que, de calça vincada e papel dobrado na mão, ande por um corredor do MNE, ao abrir-se-lhe esta ou aquela porta, ouvirá quase pela certa - «É por aqui, Sr. Doutor», ou sem porta - «Sr. Dr., o Senhor Ministro está à sua espera». Ninguém vai exigir diploma para se lhe abrir uma porta, nem prova de que fez o português técnico para falar com o Ministro.

Também toda a gente sabe que alguém que participe em seminário, jornada ou debate com nome impresso no programa, por entre diplomatas com verniz adquirido ou junto de militares estrelados em defesa, não se livra do microfone o licenciar naquele astuto momento da apresentação. No entanto, tais tratamentos são de deferência, de mera cortesia, ou então porque, na dúvida, quem trata preferirá sempre enganar-se para mais do que para menos - regra de ouro do Manual do Secretário Português. O «Dr.» por deferência e a cortesia que faz um «Dr.» não são tratamentos de excepção sediciosa, pelo que tão ridícula será a correcção antes de cada porta se abrir ou para o auditório louvar a humildade de um repetido «não sou doutor», como ridículo será que alguém a quem esse título assenta mas tenha sido tratado com mero e reles «Sr. », corrija antes de cada porta ou para o auditório com um «Sou doutor, trate-me como sou, certo?», como que a apelidar de estafermo quem lhe abriu a porta ou o introduziu no auditório.

Mas outro caso, caso completamente diferente dos casos de deferência ou cortesia amável, é das declarações enganosas, sobretudo as que se destinam a livros de registo, quer se trate de listas internas de telefones, de mapas de pessoal ou de anuários oficiais, designadamente, no MNE, do Anuário Diplomático, envolvendo pessoal de nomeação política para gabinetes ou para desempenhos em embaixadas sem concurso público e sem exigência de prova documental.

É normal que o funcionário encarregado de tais registos pergunte em algum momento ao nomeado - «Desculpe, ponho doutor?». Claro, o título não cai do céu aos trambolhões no Anuário Diplomático, nas listas oficiais e nas citações de protocolo, e muitas vezes cai se o nomeado em funções responde «Ponha, se faz favor». E o favor é feito independentemente da declaração ser enganosa e de não deixar prova de quem enganou ou se enganou.

Ora no MNE tem havido lamentável cultura de enganos, a ponto de, por anos a fio, constar, por exemplo, que fulano é licenciado em X pela faculdade Y, sem nunca o ter sido e sem nunca lhe ter sido exigido prova documental do que foi registado ou do que tenha declarado para currículo oficial, ficando licenciado por essa alta recreação.

Situações destas nada têm a ver com os costumes de civilidade que levam à deferência e à cortesia de tratamento, tolerada ou corrigida. A deferência é uma coisa séria, já a declaração enganosa, mesmo que a origem do engano fique perdida no tempo ou a mentira seja aliviada pelo anonimato de quem ingenuamente ou à boa fé a exarou, essa, a enganosa, não é abonatória.

E não está em causa o valor e a competência de quem está ou esteve nos gabinetes, e muito menos está em causa a qualificação técnica de quem andou por seca e meca do poder com título enganoso às costas como a pedrinha sobre a água. O valor, a competência e a qualificação técnica não dependem em absoluto de um título académico, nem o título determina em absoluto um perfil de desempenho.

Nos concursos ou nas provas documentais de acesso, a declaração enganosa tem um custo pesado. Nas nomeações políticas e de confiança política, precisamente porque as nomeações não são ou não devem ser por deferência nem a confiança por cortesia, a falta de rigor e de verdade só faz cair os parentes na lama.

Diplomatas, técnicos especializados e funcionários administrativos do MNE sabem como são rigorosos os passos de ingresso nas suas carreiras. Os titulares de cargos por nomeação política ou confiança pessoal não deviam estar isentos desse mesmo rigor de declaração, à parte deferências e cortesias, mesmo as deferências de ministro e não apenas as dos atemorizados contínuos abridores de portas.

Carlos Albino

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