Para alguns embaixadores tem sido quase praxe: chegados à disponibilidade, entram no serviço activo da memória. Alguns até, que nunca produziram uma linha de pensamento sobre política externa nem uma única sílaba sobre diplomacia, na disponibilidade salta-lhes a rolha, fazendo cruzar com estendal biográfico, bastante roupa de acertos de contas em que não é difícil notar alinhavos indirectos ou mesmo bordados directos, directos sobretudo se os visados estiverem já a contas com Deus. Aí temos na estante bastantes volumes sobre os quais se poderá dizer, parafraseando Sampaio - Traduzem uma acção altamente meritória. Mas isso, de gente lá do alto da carreira, com fronteira nos ministros plenipotenciários, restando para os conselheiros e secretários que como tal se congelaram na disponibilidade, uma espécie de vergonha editorial que mais não será que continuidade da linhas e sílabas que na vida activa também mostraram nunca ter possuído.
Quanto aos cá de baixo, quanto a essa casta de baixo dos escriturários, operadores, motoristas, jardineiros, funcionários do quadro que passaram a vida escrever, tantas vezes substituindo quem deve escrever e que apenas assina por baixo textos com direitos de autoria alheia, a todos esses o direito à memória tem sido entendido tradicionalmente quase como coisa que lei deveria proibir ou pelo menos condicionar, sabe-se lá, por via de alguma Real Mesa Censória. Certo é que além desse subentendimento, a vontade dos escriturários para escrever também não tem sido grande, contando-se os casos pelos dedos, embora matéria não lhes falta. O caso de José Martins, assistente administrativo na Embaixada em Banguecoque, é uma dessas excepções a que, pelos vistos, a net deu asas, tal como excepção é o caso de Pedro Faria, o motorista que anos e anos deu voltas ao poder em Nova Iorque e produziu livro, livro incómodo, diga-se, mas ponto de vista de um escrutínio a que o poder não está habituado em Portugal e que até desejaria submeter previamente à tal mesa censória como nos tempos da D. Maria I.
Ora, apetece fazer um apelo a todos os Josés Martins e Pedros Farias que o MNE cumprimenta risonhamente pelo mundo fora, que, tendo escrito toda a vida, esdcrevam chegada a hora da memória. Que escrevam com a frescura do sentimento de redigir um ofício ao estado, sem que outro assine não sendo autor e palitando os dentes fora das horas do protocolo. Que escrevam aporteguesando a verdade, já que a verdade em Portugal parece ser estrangeira. Ponham no papel ou na net o problema. Sou dos que acreditam que até um jardineiro da residência oficial pode formular o problema. Isso não lhe está interdito.
Aos diplomatas, o apelo é desnecessário, pois os diplomatas têm o dever de inspecção e a inspecção já não está em tempo de agir como real mesa censória. Por outras palavras, nenhum procedimento que fragilize o estado pode ser em tempo algum recorberto como segredo de estado. Um segredo só é de estado quando é a bem e no interesse de estado. Também temos na estante, felizmente, bastantes livros de diplomatas que não estão à espera da disponibilidade para justificarem que nunca tiveram tempo para as linhas de pensamento. Um diplomata que escreve na vida activa faz uma dádiva ao outro lado do estado onde nada deve ser secreto, ou apenas cinicamente carimbado como secreto.
Carlos Albino
Diplomacia portuguesa. Questões da política externa. Razões de estado. Motivos de relações internacionais.
28 fevereiro 2008
┌ Ponto↔Crítico ┐ 15Quem proíbe o jardineiro de formular o problema?
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