16 abril 2008

■PONTO CRÍTICO 17■ Este Brasil

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar foi, até agora, o único caso de pioneirismo na harmonização terminológica entre Portugal e Brasil. Jaime Gama, chapeau! Erram os que confundem um instrumento de mera e tímida facilitação da escrita, como é o acordo ortográfico, com instrumento de harmonização terminológica, como se fosse possível, alguma vez, cilindrar as variantes. Além de que o Brasil de hoje não é o Brasil continental de outrora, e o Portugal continentalizado na Europa também não é aquele que teve falsa expressão por força de provincianismo mental.


O ACORDO ORTOGRÁFICO empurra defensores e opositores a referir o Brasil – o Brasil que outrora prometeu e não cumpriu, o Brasil que tomou iniciativa sem ouvir quem poderia prometer e o Brasil para o qual a língua portuguesa, poderia ter sido outra, apenas serviu como instrumento de unidade e agregação interna. E, de modo geral, defensores e opositores referem esse Brasil a que Portugal tem estado habituado ou a que se habituou – o Brasil continental, fechado sobre si mesmo, como um mundo auto-suficiente e proteccionista quer nas matérias de divertimento, quer noutras matérias menos cómicas como as do mercado, para o qual Portugal contava pelo bom azeite e nostalgias que também agradavam a Portugal porque trinavam. Esse Brasil, todavia, mudou – descontinentalizou-se, abriu-se, faz a incursão global, coloca-se em pé de igualdade, tendo pés para isso, com outras áreas unificadas que também se descontinentalizaram e se abriram, como a China e a Índia, olha para a África como outrora não olhou, tem uma estratégia para o Médio Oriente, Japão e Indonésia onde não tinha. Ou seja, pegando na canção, o Brasil faz hoje o apenas um imenso Portugal pode fazer. Quando o Brasil estava trancado em si mesmo, a língua era um instrumento interno não lhe importando deveras qualquer emoção com gramáticas ou dicionários exteriores. Hoje não – para o Brasil a língua é um instrumento de afirmação externa, não se vendo mal nisso, antes pelo contrário.

Julgamos não estar em erro, se afirmarmos que foi Jaime Gama pioneiro ao conseguir com êxito o único acordo, até agora, para um instrumento diplomático de elevada importância como é a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar tivesse uma versão única e harmonizada para o mundo da língua portuguesa, valendo como texto oficial para cada um dos países da CPLP. O pioneirismo de Jaime Gama comprovou ser possível uma terminologia harmonizada em língua portuguesa para os instrumentos diplomáticos, por via da concertação – ao longo do extenso documento apenas se registam quatro – apenas quatro – marcadores de diferença para o Brasil e para Portugal/África: pessoa jurídica e pessoa colectiva; passagem inocente e passagem inofensiva; pessoa física e pessoa singular; e Corte Internacional de Justiça e Tribunal Internacional de Justiça. À evidência, diferenças que são do domínio terminológico e não ortográfico, sendo visão ou leitura estreita que se veja nisso que qualquer país tenha andado o reboque do outro.

É até agora um caso único, porquanto o imenso acervo de tratados, convenções e protocolos onde jamais houve concertação ou tentativa de harmonização de terminologias entre Portugal e Brasil, apenas denota que cada um destes países, se não anda à deriva na língua, pelo menos nem se interrogaram se a melhor estratégia não será seguirem uma rota comum.

E o que tem a ver isto com o Acordo Ortográfico? Muito. Este Acordo Ortográfico tal como se apresenta – tímido e na linha do receio de não salvar o máximo denominador comum – não é um Acordo Terminológico. Como Acordo Ortográfico que é ou pretende ser, tem que admitir variantes, todas as variantes, e ainda bem que as admite, porquanto as variantes, sem dúvida até livram qualquer idioma do labéu de enriquecimento sem justa causa. Por paradoxo, uma língua sem variantes morreria com um único monossílabo – aquele Ai! do suspiro final.

Mas grave será confundir-se um instrumento facilitador da escrita com um instrumento de harmonização terminológica geral que é impossível mesmo dentro de um país, quanto mais entre países, sendo um deles já de si equivalente a um enxame de países como é o caso do Brasil. Na linguagem corrente e franca, cujo expoente está na criatividade literária como gerador de símbolos, essa harmonização terminológica até nem é necessário que decorra de pacto – é algo de natural, permuta-se, traduz-se pelos sinónimos mais ou menos precisos da própria linguagem no intercambio dos conceitos que lhe são próprios. Já nos documentos de rigor, como são por exemplo os dos acervos diplomático, jurídico, tecnológico, científico, aí o caso muda de figura – ou há harmonização concertada e consentida, sendo esta caso a caso, ou não há, seja qual for o patamar de facilitação ortográfica.

Com um Brasil continental e fechado, duvida-se se alguma vantagem haveria em qualquer tentativa de concertação ou harmonização terminológica, designadamente da parte de um Portugal agora cada vez mais continentalizado na Europa. Não haveria vantagem nem para o Brasil nem para Portugal, ou as vantagens seriam reduzidas e meramente românticas.

Daí que, como primeira nota sobre o assunto, não deixa de causar apreensão que tanto defensores como opositores a um instrumento meramente facilitador da escrita e que não tem a profissão de harmonizar terminologias, se refiram ao Brasil de hoje como se esse país fosse o «continente» dos anos 30, 50 ou mesmo 70 do século passado, perante o qual Portugal tivesse que escolher uma de duas alternativas possíveis – ou estar na vanguarda, ou andar a reboque, quando o que se devia discutir e a sério deveria ser as bases de uma política terminológica, não se perdendo tanto tempo e tão útil com meros e tímidos instrumentos de facilitação.

Carlos Albino

Sem comentários: