Se não sairmos do beco,
a política sobrevive até certo momento
em exercícios de autofagia,
e até a diplomacia hesita esgazeada
DE VÁRIOS LADOS, das pessoas de quem menos esperava - amigos, conhecidos e outros que por precaução sintonizamos no assim-assim -, de gente que há bem pouco tempo irradiava no rosto aquele fogo de confiança que queima qualquer pessimismo que se lhe cruze, pois de vários lados me chegam mensagens de mágoa, de descrença e de profunda inquietação mental com o que se passa, não tanto em Portugal, mas no seu estado, não tanto no torrão onde aprendemos a ter bandeira, mas no formigueiro onde se lutou e ousou para que a democracia assentasse no voto secreto para escolhas que fossem públicas.
Do outro lado da terra, concretamente, recebo de um optimista sábio, homem probo e espírito livre, incapaz de angústias mas sensível aos alertas da inquietação mental, uma breve mensagem intitulada "A Divina Tragédia", explicitando, tal como nas legendas que outrora se punha nos querubins dourados a explicitar divinos mistérios, o seguinte: "Meus Caros amigos: Aqui bem de longe olho a Pátria a soçobrar. Nada falta para uma Divina tragédia grega: nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo." E mais nada do que a assinatura. Mensagem que resume tantas outras que em catadupa me têm chegado nos últimos cinco, seis dias, de gente sem dúvida necessária à felicidade nacional e que nunca regateou importâncias ruidosas nem exigiu prebendas reluzentes para, sem alarde, servir o estado e as escolhas repetidamente esperançosas do formigueiro.
Julgo que volta a ser necessário no país um exercício de coragem como aquele em que modestamente participei sem pensar no risco daquele 25 de Abril, sem me desviar do meu lema cabeceira e que confidencio - faz tudo com honra sem visar honrarias -, desconhecendo na hora do risco que no dia 29 seria preso pela última lista que a ditadura preparou para encher celas mas que não chegou a concretizar, porque dessa vez houve heroísmo e não propriamente farófia. Heroísmo esse, onde à cabeça coloco Melo Antunes, Otelo e Salgueiro Maia, que não foi uma finalidade mas um meio - daí a alegria colectiva que nasceu do torrão e do formigueiro que trocou a deusa da guerra por flores.
A todos os que, com inquietação mental me escrevem e que manifestam essa mesma inquietação sem propósitos de expansão da personalidade mesmo que alguns deles até tenham espaço social para isso, e ainda bem pois a inflação da personalidade só resulta em angústia, a todos respondo que voltou a hora da coragem, embora em circunstâncias diferentes das de outrora. A coragem hoje tem abertas à sua frente as avenidas largas da Crítica, a que o tão esquecido António Sérgio apelava num tempo em que o país apenas tinha becos e travessas estreitas. A própria Europa que hoje perigosamente já está a servir, como biombo, de benefício negativo ou tampão inibidor, e não tanto de avenida larga para a reclamada comodidade colectiva, era então, para o nosso torrão, um beco.
Ora um beco, beco tal onde habita a fome canina da celebridade, é beco porque tem apenas dois tipos de habitantes: os Profetas da Desgraça e os Profetas do Paraíso - duas categorias de gladiadores que, por sua natureza e regras do circo, é adversa das avenidas largas, e que, ou por via do poder dos que podem ou por via do poder dos querem poder, protagonizam a tal divina tragédia referida pelo meu amigo do outro lado mundo. Para já, a coragem está em dizer não a tais protagonistas do beco e recusar que a angústia seja o nosso fado.
Portanto, que a inquietação vá para a avenida, porque também sem a inquietação dos que numa democracia são probos e manifestamente sábios, a política cambaleia autofágica de conflito em conflito (como está a caminhar) e até a diplomacia hesita esgazeada (como hesita).
Fora de moralismos dos tais querubins de altar, a coragem hoje, tem sinónimo: intervenção cívica.
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