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“Portugal engravatado todo o ano
a assoar-se à gravata por engano”
Alexandre O´Neil
╠CARTA DO CANADÁ╣ Fernanda Leitão
UMA QUESTÃO DE TAMANHO
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Um belo dia convidaram o Chiado em peso, o que incluia territórios tão rapioqueiros como o Bairro Alto, o Rossio e zonas aderentes, para um sarau de poesia na Sociedade de Belas Artes. Caíu lá o Carmo e a Trindade, ao cheiro de uma seroada catita. O salão rebentou pelas costuras e, pelo agitado colorido da multidão, mais parecia o ensaio geral dos comícios políticos a vir. O espectáculo começou por uma saborosa explicação do literato que, nessa noite, parecia arrancado a uma página de Eça de Queiroz: vários declamadores iriam dizer poesia, sem indicar título nem autor, sendo os aplausos cronometrados e assim se apurando o Grande Poeta.
Os declamadores não eram conhecidos mas debitaram com garra um caudal de poemas de que os aplausos eram cronometrados compenetradamente, muito à séria, pelo literato de olho azul, cabelo loiro, barbicha mefistofélica e risinho de má promessa. Quando foi proclamado o resultado final, fiscalizado por uma comissão ad hoc, tinha ganho o poeta Zé dos Anzóis e atirados à humilhação de uma derrota imensa Fernando Pessoa, Almada-Negreiros, Mário de Sá Carneiro e... até Camões. Ainda hoje oiço o berro indignado de Natália Correia, logo abafado pela estrondosa gargalhada da multidão. Era o primeiro sinal de que o povo não se deixa enganar por impostores mal amanhados.
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Devo confessar que me diverti a ouvir a declaração de amor, em voz empostada, a Cunhal por uma deputada que, visivelmente, gostaria de ter pisado as tábuas do palco do Teatro Nacional no tempo da Senhora Dona Amélia Rey Colaço. E também devo confessar que fiquei edificada com a evolução de linguagem de Jaime Nogueira Pinto, que eu conheci rapaz salazarista a mil por cento, radical e odiando Marcelo Caetano. Tem agora um discurso de direita ma non tropo, a reconhecer a ausência de liberdades cívicas no anterior regime, que vai bem com a sua anafada postura de instalado na vida. Bourgeoisie oblige.
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Tirando isto, que é a sério, o resto é para rir. Que país tão engraçado este que em tudo o que cheire a política logo leva a brigas de Sporting-Benfica... Ainda falta um bocado para se chegar à serenidade, à naturalidade, isto é, à democracia digna desse nome.
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