Poucos? Muitos? Nenhum? Já uma vez dissemos que, antes de tudo, na base da questão da Holanda está um problema de comunicação e do que se entende por comunicação. O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, António Braga, também já o dissemos, fez bem em ter partido para esse país, tanto quanto sabemos, com o propósito de ouvir todos, de escutar quem diz saber, de avaliar como sabem e, naturalmente, de escrutinar quem diz que os outros não falam, não dizem o que sabem ou que não avaliam como sabem. Parece isto um jogo de palavras mas não é porque o que está em causa é saber se há trabalhadores portugueses explorados na Holanda ou mesmo escravizados, tal como acontece com polacos. E se há ou houve, quantos. Poucos, muitos, nenhum?
A comunicação social cumpre o seu dever em revelar o que sabe e assim que souber se tal revelação não for, antes demais, do interesse e só do interesse de quem pratica o crime, como aconteceu quando jornalistas (por acaso jornalistas, podiam ter sido diplomatas ou de qualquer outro ofício) ficaram reféns no Iraque – então, como noutros casos, a notícia era do interesse do criminoso. Se a revelação for do interesse dos lesados e destes lesados ninguém se aproxima ou consegue aproximar-se, a comunicação social cumpre um dever fundamental ao revelar. E ao revelar, se dá conta de casos ou de situações chocantes, apenas quem veja o mundo ao contrário é que chamará a isso «sensacionalismo», tramóia de jornalistas ou operação montada. Mas qual operação montada? Não se brinca com a dor alheia e a brincadeira será tanto mais detestável se quem sofre é gente humilde, ludibriada, socialmente frágil e metida em becos sem saída. Com certeza, ninguém esperará encontrar aristocratas de salão e doutores com PH em antros de exploração laboral para onde foram atraídos por absoluta ingenuidade, extrema carência ou por sonhos bem pintados. Aconteceu, como agora se prova, com polacos, o que queremos saber é se acontece com portugueses. E esta é a questão.
É claro que se pode invocar o sigilo de investigações policiais. Mas a ser assim, as polícias é que devem ir à frente, devem estar à frente, pelo que factos revelados por jornalistas não deveriam constituir para tais investigadores qualquer novidade porque não serão jornalistas a sério a interferir nessa vanguarda. E se os investigadores não podem por si passar para a frente, em função de competências territoriais, então que o façam no quadro da cooperação judiciária – no caso, com os investigadores da Holanda, ou no âmbito das muitas alíneas da cooperação judiciária europeia. Mas que vão à frente! E se algum travão se pressentir, que os representantes do país que envia, se movam com prudência e sageza junto das autoridades do país aceitante. É para isso que servem os consulados e as embaixadas, como a Polónia acaba de provar, agindo ao tomar conhecimento da situação em que centenas de cidadãos polacos foram encontrados.
Essa mania de abafar os factos e de se entender que, quando se revela, se está contra a pessoa dos representantes que deviam representar e ser reconhecidamente postigos de confiança a que os lesados recorram seguros, com conforto, protecção, ajuda e acompanhamento garantidos, é uma mania que só se pode entender para salvar desempenhos, maus desempenhos ou falta de condições para o desempenho. E aqui bate o ponto – foi um erro, sem se saber bem qual o problema, a dimensão do problema e a consistência do problema na Holanda, a extinção do posto de conselheiro social, não estando em causa quem estava no posto ou quem deveria estar. A embaixada precisa desse posto, e de pessoa qualificada e disponível para esse posto, para fazer o seu papel de embaixada. Foi um erro porque a questão foi e é da embaixada e consulados irem ao encontro das pessoas. E não o contrário, das pessoas irem à embaixada - não vão porque não podem ir, 200 quilómetros para lá e 200 quilómetros para cá, além de que estarão submetidas, manietadas e sob chantagem, se for mesmo o caso de explorados e escravizados por rede organizada. Há? Não há? Isto é que deve preocupar um embaixador, um cônsul; isto é que em tempo devia ter sido exposto a Lisboa. Na pessoa de Cristo admite-se e aceita-se aquele apelo evangélico do «deixai vir a mim os famintos»; numa embaixada do século XXI, num consulado do século XXI, numa representação de um país da UE noutro país da mesma EU do século XXI esse preceito não resiste. Há famintos? Então tem que se ir até junto deles e com o cristo adequado.
Portanto, senhor Embaixador Júlio Mascarenhas, garanto-lhe que continuo a beber café por umas chávenas que, por benfazeja intermediação, há anos me ofereceu e que considero, pela singeleza dos objectos, uma das melhores dádivas para o meu cafézinho. A estima não se evaporou nem perdeu sabor, mas para tanto é preciso café a sério e não café de cevada. Por outras palavras, o jornalismo de cevada, de grão torrado desse cereal de imitação, esse é que não ajuda a diplomacia séria e o consulado sério. O outro jornalismo, aquele vai ao encontro dos lesados, esse sim, ajuda e mais: dignifica. Por isso, merece respeito.